Tuesday, February 02, 2010

Chamo-me Damião e estou cansado.
Tenho o canastro moído, o cu sentado sobe o alto de uma conjuntura panorâmica .
Daqui o mundo parece bem mais pequeno , o céu tão perto de um chão de nevoeiro que batalha inglória contra o esqueleto de granito e outros seixos sem nome .
Poderia caber numa bola de vidro pesado , paisagem equilibrada na mão de uma petiza parisiense vestida de um animal de pele valiosa .
A névoa gela-me o corpo , sinto-o de forma mais flagrante nas extremidades , em particular na ponta dos dedos , é difícil mexe-los . Fricciono a palma das mãos uma na outra , o gesto torna-se familiar , devo o ter feito varias vezes , talvez a moldar cobras de plasticina ou a predizer uma iguaria deliciosa.
Há pequenos nichos de neve a cobrir o calvo pasto da serra, a terra é negra e dura , adivinham se medíocres pinheiros e algumas fiadas de castanheiros despidos , o ar é gélido e paralisante.
Nas minhas costas eleva-se uma enorme parede de granito, um mar de cinza frio disposto em vertical, é picotada de grandes irregularidades ,.. - Testemunhos do tempo .., -diria um guarda-livros , para mim mais parece uma enorme lápide vandalizada por um rato dentes de sabre.
Alteio as mãos já quentes ao nível do meu rosto , juntas e arqueadas pela extremidade mindinha criam um abrigo que preencho com o ar acalentado que me ausenta da boca . Deu me vontade de rir ao vê-las tão perto , as mãos têm linhas e montes e eu estou aqui com elas, numa serra e sem um plano .

Sei que irá anoitecer e não vou esperar por confirmação , anoitece sempre .
Preciso de me manter quente , tenho de secar estas roupas … que roupas são estas , que dizem elas de mim ? Não me lembro de nada .
Cheiro a húmido caldeado com transpiração , os tecidos são velhos e gastos e não prendam pelo colorido . As calças são de um tecido grosso , parece fazenda com acabamentos toscos e desprovidos de competência estética . Tenho uma camisa encorpada de flanela com padrões que variam entre o vermelho gasto e um verde tropa, coloquialmente delineados por corrimões de tinta negra. A cobrir a camisa , um casaco de pele , sei que é genuína pelo cheiro intenso que tem . Não tem vincos do uso , é sem duvida mais recente que as restantes peças de roupa .
As botas são velhas e gastas , não parecem ter vontade de contar a minha história . Queixam-se dos pés que se calçaram de ‘’meias ‘’ maratonas constantes.
Não faço qualquer sentido vestido desta forma.
Está frio e não há ninguém para culpar.



Descer deste meu trono torna-se uma tarefa bem mais difícil do que poderia cogitar , uma passo menos firme poderia precipitar-me numa queda com um final aparatoso, sem fragor triunfante , fracturas múltiplas , hematomas , perfurações , hemorragias , traumatismos .. não posso correr o risco de partir dentes , os mortos com a boca desfeita sempre me deram enjoo .

O chão já firme torna-me mais perpendicular, até gosto de assim estar , respiro de forma mais fluida e torno-me menos rígido


Nada está seco . Vai ser difícil fazer fogo . As poucas arvores em volta estão verdes e húmidas .

Perco outra vez a minha verticalidade , afinal de contas , os galhos e as folhagens caídas não nascem nas arvores , seria cómico de ver e imaginar como seria , mas não tenho tempo para o fazer .

Estou a caminho do meu pequeno covil na escarpa. Ter andado fez me bem , estou menos torpe e mais escorado nos movimentos , ainda bem que é assim. Terei de fazer três vezes o mesmo trajecto para acarretar todo o entulho orgânico que encontrei .
Na primeira viagem o trajecto adivinhou-se complicado , subir novamente , carregado e a deslindar o melhor percurso para o fazer , saber de forma prudente onde fixar cada passo tendo sempre em conta o equilíbrio da carga .
A segunda foi bem mais fácil, memorizei o melhor curso da subida, antecipei os pequenos incidentes, sem duvida aprendi com a primeira vez, não tive tanto medo, não oscilei .
Pensei que o terceiro fardo se torna-se agora o mais fácil, mas não. O peso das duas primeiras subidas cansou-me.

Nestes momentos acho me ridículo, risível, assombra-me sempre o pensamento de uma suposta moral a retirar . Passo a explicar , primeiro cometemos erros , depois assimilamos , aprendemos com os mesmos e progredimos , seguidamente dá se a fase do término , de uma idade gasta , onde a única coisa que nos resta é a experiencia para alumiar alguém a fazê-lo da melhor forma .
Está frio e não tenho ninguém para ensinar .

Recordo-me de relatos que de certa forma se poderiam congregar ao meu . Esta história ‘’típedecida’’ ( típica ,tipificada , estupidificada , cliché ) , de alguém que perde a memória e que desperta num lugar que lhe é estranho , normalmente , lugar esse , envolvido de alguns contornos enigmáticos , que se mesclam com o Ser solitário perdido numa ‘’imensidão natureza ‘’, restrita aos perímetros geográficos descritos . Desta forma , pesa então em mim , a imputação perante esta formula , este argumento já tantas vezes usado , que no fundo terá sempre um fundo fundamentado . Tenho então de encontrar todo o fundamento disto , a narrativa entre o chicote da minha vida e o barqueiro ’’ nublecido ’’ do rio Estige.